Havia um grupo de garotos brincando por ali. Quando nos aproximamos, com nosso grupo, percebemos que estavam no meio da rua. Participávamos todos de uma grande gincana. O nosso grupo era diferente do daqueles meninos que ali brincavam.
Súbito um carro - ou alguma coisa mais estranha que isso - atropelou os meninos. Nenhum deles morreu, mas seus corpos ficaram separados em pedaços espalhados pelo chão. Não havia sangue. Não havia desespero. Não se ouviram gritos. Mas ainda assim, era um grande problema ter partes de corpos espalhadas por aí. O nosso grupo se colocou a ajudar os rapazes. Abandonamos também a competição naquele momento.
Um dos garotos tinha ficado com a cabeça totalmente separada do corpo. Eu não tinha dado conta do paradeiro do corpo e fui logo me aproximando da cabeça, que tinha sido arremessada pra bem longe. Fui me encontrar com ela, a cabeça do garoto. Tomei-a em minhas mãos. Segurei seu leve peso não sabendo muito bem como fazer aquilo. Era estranho. Não sabia se ele sentia dor. Não dava pra ver suas estranhas.
Olhei firme nos olhos dele, embora não me lembre muito bem se ele chegou a abri-los. Notei que era um garoto muito bonito. Uma beleza que ia muito além da beleza física. Os cabelos eram lisos e pretos com uma franja que lhe caía nos olhos. O rosto bastante branco. Não posso dizer se era alto, nem mesmo magro.
Sem saber o que estava fazendo, comecei a acariciar o cabelo dele. Cheirar o rosto, as bochechas e as proximidades da boca. Eu gostei muito do cheiro dele e de como ele ficava preso entre a fina penugem que cobria sua pele. É uma coisa incrível essa de cheirar as pessoas. Ao longo do cheiro você descobre as texturas e como elas podem se combinar e variar pra produzir os cheiros que guardamos em nosso corpo. Eu gostei tanto do cheiro daquele rosto que quando me lembro disso, ironicamente, fico sem ar. Mas naquele momento eu buscava o cheiro dele, como se buscasse o próprio ar. Como eu ia respirando ele, sentia que os meus pulmões se enchiam, mas não era só de ar, ou de cheiro. Eram sentimentos pesados, que eu poderia descrever a sensação do passar pela laringe, pelo esôfago, pelo estômago e irem se instalar em todos os cantos ali dentro de mim, que ainda tinha um corpo pra sentir tanta coisa.
Como me senti à vontade e com vontade de fazê-lo, fui beijando seu rosto todo, as bochechas, os lábios. Devagar. Rápido. Percebi que era quente a sua boca e também dentro dele. Embora dentro dele fosse só uma cabeça, sem motivo pra ser quente. Era tão bom, que eu queria ter uma caixa pra guardar aquela sensação. À medida que nos beijávamos, sorriamos. Senti que o amava cada vez mais, e e era um amor muito grande, desses que eu só senti em sonhos.
Abracei aquela cabeça, como se nunca tivesse abraçado ninguém ou nada antes na vida. Com um tamanho desespero, uma urgência. Uma vontade de fazer a cabeça se fundir com o meu ser, com o meu próprio corpo. Abracei a cabeça como se estivesse abraçando seu corpo inteiro. Abracei a cabeça como se tivesse a necessidade de possuir a sua existência, como se ela fosse eu. A sensação mais mágica de todas é que me senti abraçada de corpo inteiro também. Inerte na felicidade daquele momento de troca. Feliz com o amor que eu, finalmente, podia dar pra alguém. Sem medos, sem jogos, sem pensar. Embora o amor com a cabeça parece direcionar-nos exatamente na direção contrária aos sentimentos.
Comecei a me perguntar como ele se sentia com aquela situação. Eu ali agarrando a cabeça dele, no meio de um acidente. Ele ali sem corpo. O que ele sentia? Poderia sentir? Ele não podia se mover. Não tinha escolha. Mas correspondeu aos meus cheiros, meus beijos, meus abraços, meus sorrisos. Estava sereno. Os olhos fechados e sem palavras. Era uma confiança mútua. Eu abraçava a cabeça e pensava bem forte: "você vai ficar bem!". Eu fiz amor com uma cabeça no meio de um cenário trágico. Um cenário que para a própria cabeça seria desesperador.
Não lembro exatamente da sequência de fatos que se desenrolou desde então. Mas sei que nos separamos por um tempo. Ele foi para algum lugar onde poderiam usar um pouco de magia para remendar seus pedaços. Os dois pedaços que tinham sido feitos dele. Muito tempo foi se passando e eu não tive mais notícias.
Num desses dias, eu me encontrei com um rapaz que tem as mesmas características físicas do garoto sem corpo. Não me lembro como, nem porque. Simplesmente aconteceu, no meio da rua, próximo ao local do acidente. Além da semelhança física ele demonstrou me conhecer. No começo eu achei que era o garoto sem corpo, mas não era não. Era apenas uma sombra. Ele falava demais e eu não confiava no que saia de sua boca. Não havia entre nós nenhuma ligação parecida com aquela que fica entre duas pessoas que tenham feito amor.
Começamos a nos beijar. Eu e aquele andróide esquisito. Eu achei que não fosse ter nenhum problema. Achei que o garoto sem corpo não voltaria mais e que era hora de tocar a minha vida adiante. Eu já tinha tentando esquecer o garoto sem corpo, mas eu não queria. É difícil abandonar, se desapegar de um sentimento como aquele. É uma pena ter que abrir de algo tão raro.
O garoto do corpo separado apareceu naquele dia. Ele estava fisicamente bem. Tinha novamente o corpo colado à cabeça. Ele ficou surpreso e pareceu muito triste ao ver que eu estava com a sua sombra. Meu coração partiu. A sensação era péssima. Eu nunca tinha feito aquilo e me senti muito mal por ter "enganado" o ex-garoto-da-cabeça-separada-do-corpo. Eu me senti devastada pela tristeza que vi se manifestando com a presença dele. Nós nos separamos. Foi muito duro viver sabendo que havia aquela distância enorme entre nós. Uma distância que eu não poderia percorrer.
Lembrei que eu tinha uma espécie de encantamento pra usar. Não sei como eu tinha conseguido aquilo, eram uma coisa difícil de achar ou de fazer hoje em dia, e eu só tinha um. Era um encantamento do esquecimento. Decidi usá-lo para fazer o ex-garoto-da-cabeça-separada-do-corpo esquecer a cena
que tinha visto naquele dia em que eu estava com a sua sombra.
Eu queria muito que ele não ficasse triste. Eu queria muito ficar com ele. Eu queria muito que ele não tivesse ficado triste por minha causa. Isso só seria possível se ele esquecesse o que tinha visto. Quando usei o encantamento, ele se esqueceu. Não estava mais triste. Mas mesmo estando perto de mim, nós não estávamos mais juntos. Eu não usei o encantamento em mim. Ainda me lembrava de tudo. Sabia o que tinha feito. Não havia mais sintonia em nosso pensamento.
Apareceu alguém no meio do meu sofrimento e me disse que a única maneira de eu me livrar daquilo
era contando a verdade ao ex-garoto-da-cabeça-separada-do-corpo. Foi então o que fiz imediatamente. Não me lembro de sua reação. Não me lembro do que aconteceu. Depois acordei. Separada mais uma vez do ex-garoto-da-cabeça-separada-do-corpo. Vários mundos distante.
Onde acordei não existem encantamentos, como tenho percebido duramente. Tudo que eu queria era me fazer esquecer que se pode ser tão feliz.
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